Despertar em fim
Despertar em fim
O tempo
seco, a garganta rasgando, o peito puxando o ar. Ela, Joana, estava assustada,
esbaforida quase, ao sair do carro. A amiga, chamada Débora, que estava ao
volante, não entendia direito. Apenas saíram do encontro do grupo de vizinhas e
ex-vizinhas no meio da tarde e se atrasaram alguns poucos minutos para buscar
as filhas de Joana. Não foi nem dez minutos a mais de atraso. Joana pegou as
meninas e dispensou Débora com um aceno de mão na porta de saída da escola e
com um breve e seco - “Obrigada, a gente vai a pé mesmo. É pertinho e é melhor!
”. Não entendendo direito, mas suspeitando, Débora volta até o carro, dá a
partida e vai embora com a pulga atrás da orelha sem deixar de notar, ali
perto, o carro do marido da esposa-mãe-assustada-esbaforida Joana com suas duas
meninas, as três quase que correndo pela calçada fria. O marido não percebeu
que tinha sido visto por Débora, mas estava lá na qualidade de observador
policialesco dos passos de sua esposa. Débora, ao ver aquele homem se
espreitando no carro, como que escondido por detrás de um escudo de ferro e
vidro, se encheu de raiva e indignação. Há tempos que ela sabia que o tal
maridão castrador não gostava que a esposa dócil saísse com ela. A justificativa
era a cervejinha que a Débora gostava de beber vez ou outra e o refri que os
filhos das amigas (“meninas”, como gostavam de se tratar) costumavam tomar, mas
as filhas de Joana não podiam se dar ao prazer do açúcar do refri. Menos de
quinze minutos depois, Joana chega com as filhas ao apartamento. Mal consegue
perceber o próprio alívio pelo o fato de o marido ainda não ter chegado. Ainda
havia muito para fazer. Trata de empurrar a mais velha para o banho enquanto
começa a requentar o jantar. O marido chega logo depois com ar sério. Esboça um
sorriso para filha pequena e mal olha para Joana, que percebe e aproxima ainda
mais a barriga no fogão, arqueando os ombros em desespero de culpa.
O jantar
frugal, mas rico em cores e verduras se dá de maneira formal. Joana se esforça
para levantar os olhos, mas prefere se concentrar nas meninas. Por uma ou duas
vezes ela tenta cruzar seus olhares com os do marido, que a ignora. Recolhe e lava a louça enquanto as meninas
iniciam os deveres de casa. Tira as dúvidas sentada à mesa onde antes jantara.
As mãos estão mais frias do que de costume. Procura pensar que é por causa da
lavagem das louças somada ao frio de junho. Ela se percebe no seu moletom
frouxo, na sua sandália de borracha desgastada. Esforça-se para se olhar no
espelho grande afixado em uma das paredes da sala. Sua altura apenas mediana
torna a empreitada maior do que o mero espichar de coluna e pescoço, mas
vislumbrou a parte de cima da cabeça, com o cabelo preto e alguns tons de
grisalho. Um feixe de culpa por tanto desleixo atravessou-lhe a mente,
causando-lhe desespero ao pensar em quanto que precisaria gastar para se tornar
mais apresentável. Quando não se é dona de si, muito menos de seu próprio
dinheiro, a dependência aos senhorios torna-se ainda mais opressora. Uns
segundos da própria infância lhe vieram à mente. Correndo por entre as árvores
da chacrinha dos pais em uma tarde agradavelmente morna.
- Mãe! Mãe! Terminei. – grita a mais velha.
Em um
misto de susto e frustração, ela deixa os devaneios e volta o rosto para a
filha mais nova, pois a mais velha já tinha se levantado e estava grudada ao
celular. Hora de colocar as filhas para dormir, sem antes vestir pijamas,
escovar os dentes e beber um pouco de água. Enquanto carregava o apartamento de
dois quartos nos ombros, ela parecia ouvir a respiração lenta e quente como um
dragão do marido deitado ainda de camisa e calça social e sem sapatos no quarto
principal, lendo jornal. Como ela queria ter continuado naquele passeio de
esperança das correrias alegres da infância! Há muito ela constatara que as
suas esperanças de alegria e motivação se concentravam nas lembranças. Para
ela, o saudosismo infantil era um misto de fuga, frustração e utopia. O que lhe
apertava o peito em angústia também trazia um prazer de um futuro que
relembrasse o passado.
Despertar.
Deitada
de lado, a luz branca do dia invadiu seu rosto. Abriu os olhos com certo
cuidado, pois percebeu que isso lhe causava dor, mesmo que apenas no olho
esquerdo. Nem se surpreendeu como tinha “apagou” de sono não se sabe quando e
tratou de se desvirar logo para enfrentar o café da manhã. Viu logo, com
terror, que o marido não estava ao seu lado. A respiração curta e nervosa
voltou a lhe comandar as ações. De um pulo, foi à sala e viu que o marido já
havia ido embora. Não sabia se sentia alívio ou culpa, afinal, ele saiu sem ter
tomado o café. Não sabia quais seriam as implicações de mais essa falta. As
meninas ainda dormiam no quarto ao lado, com a porta entreaberta. Arrastou-se
roboticamente, agora comandada pela resignação, até o banheiro cuja única
função naquele momento parecia ser a de um grande porta-espelho. “Não”, pensou
ela, “não está tão feio. Um pouco de gelo e corretivo resolverão o problema.
Quase não está inchado”. Enquanto preparava o milagre em remédio sob a forma de
gelo envolvido em um pano, pensou em ligar para Débora, mas não sabia se iria
se segurar, se conseguiria conter o grito já mudo da própria alma. No entanto,
ligaria apenas para saber se a amiga e Carminha, a filha, tinham dormido bem,
afinal aquele frio do meio do ano desencavava os demônios mais entrevados.
Lembrou-se, porém, que apenas ela parecia não gostar do tempo frio da cidade.
Todos se regozijavam por poderem dormir melhor, mesmo tendo que acordar com
mais raiva da alcova quente.
Permitiu-se
(palavra pouco frequente para ela) deitar-se um pouco no sofá com o gelo no
rosto. Marcou uns vinte minutos, alternando as posições para não correr o risco
de queimar a pele já machucada. Como já não era a primeira vez, não chorou
mais, não se fechou fetalmente em si, não correu para o telefone para falar
apenas o superficial com a mãe. Ao contrário, regozijou-se com o vento morno da
infância pelos cabelos soltos e quase compridos, os pés descalços a fugir de
pedregulhos pontudos, a despreocupação com o que viria depois, principalmente
com o bem depois na sua vida. Ela acorda daquela esperança com as conversas
altas das pessoas que passavam na calçada logo abaixo e em frente ao seu
apartamento. A maioria andando um pouco mais rapidamente para escola ou
trabalho, enquanto alguns poucos se exercitavam em caminhadas e corridas.
Pensou em sentar no sofá para olhar algumas daquelas pessoas, mas tratou de
corrigir e maquiar a dor que ficava um pouco abaixo do olho esquerdo, afinal,
as meninas estavam para acordar. Com máscara nova, ela acorda as filhas com o
sorriso petrificado e entra de novo na engrenagem do casamento-maternidade
compulsório que ela escolheu desde a infância. Viva o livre-arbítrio!
Desdobra-se em três, quatro, cinco Joanas, até o derradeiro momento pós-almoço
em que leva as meninas para a escola. Tratou de levá-las mais cedo para que
nenhuma outra mãe a visse. Não tinha receio dos pais, afinal quase não se vê
pai em escola, havia apenas um que era um pouco mais próximo a ela, pelo menos
a cumprimentava com sorriso nervoso e passos cansados e apressados, sempre
suado, principalmente nas costas, era o que dava para notar, com sua camisa
molhada atrás. Felizmente ela não foi encontrada por ninguém e, novamente, ela
se desencontrou a passos rápidos no seu apartamento de sonhos infantis.
Um
pensamento chocou-lhe a mente enquanto decidia qual capítulo do Salmos iria ler
e meditar: “Por que não correr também? Por que não fazer como tantos outros e
outras que aproveitam o calçadão para correr? ”. A expectativa de recriar e
reviver a liberdade da infância, mesmo que encalacrada em um calçadão
titubeante com cães e crianças soltas apressou seu coração novamente. Limpou e
organizou com mais rapidez e ansiedade a casa. Como sempre, redobrou a atenção
aos cômodos e partes da casa que o marido mais usava. Com as mãos um pouco
trêmulas reavivou roupas de ginástica: uma calça comprida estilo legging e uma camiseta mais leve. O
tênis surrado lhe serviria naquele momento. Esperou dar 16h30 para não pegar
tanto sol, apesar da razoável quantidade de árvores pelo percurso. A vergonha
de estar usando o calçadão apenas para uma caminhada mais compassada lhe
causava culpa, a velha companheira que lhe espreitava do púlpito. Sentia
vontade de pedir licença e dar explicações para cada um por quem passava.
Aquela calçada estava sendo usada para um entretenimento que ela não sabia se
era adequado (permitido?) ou não. Não era o útil caminho até a escola. Parecia até que era outra calçada, outro
percurso. Mesmo assim, ela se aventurou. Sempre abaixava os olhos quando vinham
pessoas em direção contrária, principalmente as do sexo masculino. A
transgressão daquela tarde já era demais, não poderia incorrer em mais outra.
Aqueles
trinta minutos de caminhada lhe trouxeram um gostinho da infância livre, com
futuro intangível. Chegou em casa se autorizando sentir-se aliviada depois de
um prazer de criança. A rebeldia não lhe parecera tão mal. Tomou um banho e
apressou-se para buscar as filhas. A ladainha e roteiro do resto da noite não
foi tão tensa quanto à da noite anterior. A presença do marido não lhe causava
tanto desconforto. Ele que mal olhava para ela, mesmo sabendo que por detrás
daquele corretivo ele tinha lhe deixado outra lição. O marido delimitou seu
espaço e lhe marcou o rosto, assim como o gado no pasto. Um mero corretivo não
atrapalharia em nada, pensou ela.
Joana se
deu ao luxo de repetir suas transgressões em série. Das caminhadas breves,
passou a intercalar com trotes e depois de algumas semanas já corria com
facilidade algo em torno de 2km sem parar. Cada vez mais se aproximava da
liberdade inocente da infância. O marido já tinha percebido e sabia dessas corridas,
mas constatou que isso lhe era vantajoso, pois encontrava uma Joana mais
bem-disposta, com uma casa mais arrumada e mais limpa. Em outras palavras, a
esposa estava com mais ânimo para ajudar na manutenção daquele lar tão ético e
ascético.
A força
corporal que Joana ia adquirindo parecia lhe dar mais força para sobreviver
naquele mar sem borda, naquela piscina sem margem. O fôlego que lhe faltava no
início dera lugar a leves sorrisos sempre que ela completava suas corridas em
menos tempo. Ela esbarrava com desenvoltura na criança de outrora e já se via
correndo lado a lado consigo mesma em alguns momentos. O olhar da moça mais
esbelta para a criança alegre era um reconforto para ela, um fortalecer de
alma.
Seus
despertares, apesar das dores púbicas de noites servis, eram sempre uma
pré-liberdade infantil, uma nostalgia do correr do vento por entre os cabelos
agora embranquecidos temporalmente, uma alegria encarcerada numa calçada
hermética de sua vida em fim. Enfim!
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